segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Sr. André

Campo Grande
À direita, a Livraria Lácio. As fotos foram tiradas em 18-06-2008







Há coisa de uma semana, entrei numa livraria sazonal, livraria de feira, na Avenida 5 de Outubro, o prédio que faz gaveto com a Rua Princesa Maria Francisca Benedita. Conversei com o livreiro, que esteve mais de vinte anos na Bertrand, incluindo a loja da Rua Prof. João Soares. Veio à conversa o Sr. André, da Lácio, e fico a saber que o Sr. André (António Marques André) faleceu e a livraria fechou as portas.
Deixa saudades. Gostava de falar com ele. Já há bastante tempo, ouvi-o falar de Manuel Brito, dos começos da sua actividade na livraria Escolar Editora, ali ao Príncipe Real, da criação da Galeria 111. Manuel Brito era o proprietário do espaço da Lácio (antes, 111, do n.º da porta de entrada). O Sr. André pagava renda. Falou também da sua experiência brasileira, na mesma actividade. Vejo que publicou nessa altura um pequeno livro de poesia, Entrevero.
Das palavras que lhe ouvi e de livros, quero só lembrar algo da guerra civil de Espanha. Falou-se do jornalista Mário Neves, cuja primeira grande reportagem deu a conhecer os massacres de Badajoz, pelas forças nacionalistas, e do livro O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler. Tenho uma edição dos Livros de Bolso Europa-América, incluída no meu «Plano de Leitura» há quarenta anos. O Sr. André conhecia bem o livro, a figura de Mário Neves e os acontecimentos da época. Eu aprendia.
Satisfazendo um gosto antigo, vou ler O Zero e o Infinito, tendo no pensamento uma pessoa que me era simpática, e lembrando, homenageando quem tão bem exerceu a sua profissão, ultimamente avara e amarga.
[O Sr. André só veio a falecer no dia 18 de Janeiro de 2015. A cremação foi no cemitério do Alto de São João, cerca das 09:30 de 20-01-2015. Fui avisado pelo sobrinho Ricardo André, no dia 19 de Janeiro de 2015, que soube de mim, a partir da leitura que fez desta mensagem.] [Nota acrescentada em 15-04-2015.]
       Neste blogue, em Maio de 2013:
  Livrarias condenadas? Nós, condenados
      Ontem, passei com um amigo um pouco meteoricamente, por uma livraria de grandes tradições, no Campo Grande. Para mim, belíssima e grande.  Encontrei desolação no senhor livreiro, um perfeito senhor no seu ofício, ainda a lutar, na sua já avançada idade. Em reunião de uma associação de livreiros, um senhor duma dessas grandes cadeias-aglomerados de editoras diz claramente: as «pequenas» livrarias são para acabar. E o senhor da livraria de que começámos por falar queixou-se da renda que tem de pagar pelo espaço.
      Já me tinha chegado notícia de livrarias a fechar ali para o Largo da Misericórdia. Hoje, vejo neste artigo da revista Ípsilon que o mal já começou a alastrar, apesar de uma ou outra andorinha que não faz a Primavera, como a nova livraria na igreja de Óbidos.
      Isto está mal; esta liberdade de matar as livrarias deve ser regulada. Como pode o preço do arrendamento aumentar, por exemplo, seis vezes, a pretexto de remodelação profunda de um espaço que dela não precisa? É caso para dizer que o Estado não está a regular bem ou dito de maneira mais fácil de entender: o Estado não regula bem.
      Que cidades são estas?
*
http://portugaldospequeninos.blogs.sapo.pt/tag/livros (9-12-2014, Céus Desabitados,  por João Gonçalves)
http://portugaldospequeninos.blogs.sapo.pt/718690.html (28-5-2010, por João Gonçalves)
http://livrariapodoslivros.blogspot.pt/2009/02/livreiro-especie-em-vias-de-extincao.html (19-2-2009, ver comentário de Anónimo e Cassandra)
http://somatos.blogspot.pt/2012/03/e-verdade-que-trabalho-numa-grande-loja_28.html (28Mar2012) Abre com uma sobreposição de frase e imagem, multiplicadas em toda a página. Pode ler mais comodamente a mensagem na hiperligação seguinte.
http://encontrolivreiro.blogspot.pt/2012_03_01_archive.html (30-3-2012; é reproduzido o texto publicado dois dias antes, em somatos.blogspot. A referência ao Sr. André vem no penúltimo parágrafo. Cassandra e Sandra são a livreira Sandra Oliveira.

* 

http://aterraeagente.blogspot.com/2013/05/livrarias-condenadas-nos-condenados.html (Notar a referência a livro de André Schiffrin, no artigo da Ípsilon, secção «O negócio»)
http://www.thenation.com/article/171508/how-mergermania-destroying-book-publishing  (Artigo de André Schiffrin)

4 comentários:

  1. Gostei desta evocação.
    Entrei muitas vezes naquele espaço. Da última, há um ano, recordo o ar desamparado do dono - não sei se seria o Sr. André... - sozinho, a arrumar livros cada vez mais amarelos pelos anos em que ali estacionavam.
    Mais um sinal do tempo antigo que se apaga. Várias gerações de universitários ali compraram livros. Fui um deles.
    Obrigado, ZL

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  2. É curioso que, tão perto da universidade, as livrarias desapareceram. Como sabes, havia também a Universitária, a Bertrand (antes era da Moraes editora) e a Caleidiscópio, que não sei se ainda existe, mas já não era bem a mesma coisa. Da última vez, o Sr. André, já nem me reconheceu. Tive de dizer quem era. As minhas visitas eram intermitentes... Nas referências, há recordações de quem o conheceu melhor e com intimidade, por exemplo Albano Estrela. Muito interessante e mais circunstanciado. O Sr. André, nos últimos anos, na sua franqueza, classificava duramente o panorama em que as livrarias mais tradicionais estavam a ser colocadas. Abstenho-me da palavra, mas... era uma só.
    A experiência brasileira dele, devia ser muito novo..., foi muito rica, de certeza. Talvez se possa resumir numa só palavra, para nós portugueses desconhecida, a que deu o título ao pequeno livro de poemas: Entrevero. (êro). Vale a pena ir ao Houaiss ver o significado. Deve dizer muito sobre a predisposição dele, a visão da vida.
    Um abraço natalício, como os de todo o ano, mas mais especial
    ZL

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  3. Herberto He(lde)rético

    Reuniram.
    Deliberaram.
    Premiaram.
    Porém, o poeta não desceu à honraria.
    Permanece no seu plano.
    Sem desdenhar.
    Sério.
    Contido.
    Indiferente ao elogio.
    Assim, não legará o discurso do recompensado
    Nem o sorriso convencional
    Mascarará sua face
    No ritual do “beija-mão” do datável acto.

    Tornou-se maldito
    porque rejeitou o que não devia ser rejeitado.
    Não se sujeitou ao que devia ser agradecido
    - porque nada tem que agradecer.
    Não recebeu o dinheiro-premial
    Porque se recusou a ser consumido.
    Continuará como d’antes:
    Olhando o mundo,
    Construindo imagens,
    Esculpindo sons,
    Deambulando pelos penumbrosos corredores das palavras
    No caminho da luz vislumbrada
    Que leva ao cume da montanha.
    Que a tua heresia, poeta, não forje seguidores
    Que “júris” e ganhadores desculpe.
    Que sejas amaldiçoado pelo exemplo que deste;
    Pelo acto simples de te afirmares apenas tu.

    André da Livraria Lácio

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    1. Obrigado, Sr. André. Bela poesia nos deu. É a primeira de si que tenho o privilégio de conhecer.

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